O universo a partir do qual Suzana Montoro define suas formas particulares de expressão e colhe as matérias-primas de sua escrita é o inconsciente, em toda a sua vastidão e complexidade. Não estão estabelecidas localizações geográficas ou temporais recorrentes – sejam reais ou imaginárias – para os enredos de seus breves contos. Os gestos, falas, atos e sentimentos de seus personagens não pretendem tipificar matrizes universais. Suas narrativas não se amoldam pacificamente a determinadas condutas literárias de gênero. Estas dezoito histórias, que se apresentam sob a égide de uma linguagem direta e de um trato carinhoso com a disposição das palavras, traçam um percurso através de superfícies reconhecíveis das relações humanas, sob as quais se movem os intrincados processos da alma. Assim, é possível dizer que a literatura de Suzana constrói-se na travessia por sobre a matéria abismada da psique.

A ideia de embate contínuo frente a forças invisíveis que fustigam o consciente é tema que perpassa os dois primeiros eixos que compõem este “Travessias”. Render-se sem reservas ou resistir aos desejos, à ferocidade ínsita, à herança de sangue? Ceder às próprias tendências ou fechar-se em baluarte para combater, heroica ou teimosamente, os assaltos do tempo, da morte, do destino inexorável? Entrega ou cidadela à beira do abismo? No derradeiro conjunto de contos, entretanto, as homenagens à vida brotam de nascente profunda, contemplando o respeito aos tempos próprios de viver e morrer, o carinho verdadeiro, a busca corajosa de si, as imagens que os corações elegem para resumir as existências.

“O mais simples é que comove, muito virtuosismo incomoda”. Pela voz de uma de suas criaturas, a autora assina o conjunto destes relatos carregados de intensidade única e comovente. Consciente ao extremo do percurso escolhido, traçado palavra a palavra com os recursos da invenção e da memória, Suzana Montoro atravessa com passo seguro por entre as turbulências do espírito humano.

Edmar Monteiro Filho